CERRADO
Por que o Cerrado é o bioma mais ameaçado do Brasil?
Pressionada pelo avanço da fronteira agrícola, savana mais biodiversa do mundo conserva apenas 54,4% de sua vegetação original.
Disponível em: https://www.nationalgeographicbrasil.com/meio-ambiente/2021/11/por-que-o-cerrado-e-o-bioma-mais-ameacado-do-brasil
POR ADELE SANTELLI – PUBLICADO 28 DE NOV. DE 2021 15:55 BRT, ATUALIZADO 13 DE DEZ. DE 2021 11:39 BRT
A savana mais rica e úmida do planeta, com mais espécies de angiospermas – as plantas com flores – do que a própria Amazônia, em um território com metade do tamanho, é responsável pela água de quase 70% das bacias hidrográficas do Brasil e abriga 5% da biodiversidade de todo o mundo. Pode não parecer, mas essas são algumas das características do Cerrado.
O bioma mais ameaçado do país, sobretudo pela agricultura de larga escala, não habita o imaginário de boa parte dos brasileiros, apesar de ocupar 23% do território do país, com mais de 200 milhões de Km2, estendendo-se pelos estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo e Distrito Federal. Considerado por muitos um sertão monótono, ‘quase um deserto’, com arbustos pouco chamativos e árvores tortas, ele abriga 12.599 espécies de plantas e ao menos 2.653 de animais vertebrados, muitas delas endêmicas. O Cerrado também é o bioma das flores: são 12.274 espécies – a Amazônia tem 12.103.
Entre os tipos de vegetação, há grandes porções de savanas e campos, mas também trechos de florestas. A biodiversidade do bioma é em parte explicada pela umidade, que é maior do que nas savanas da África, Austrália e Índia. Por outro lado, o Cerrado é flanqueado por duas florestas exuberantes, a Amazônia e a Mata Atlântica, que teriam o beneficiado, fazendo com que, sobretudo sua flora, se enriquecesse significativamente.
“Eu definitivamente considero o Cerrado o bioma mais ameaçado do Brasil. Ele não tem a proteção que outros têm, nem o apelo emocional visual dos biomas florestais brasileiros”, lamenta o engenheiro florestal e agrônomo Bruno Machado Walter, pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia e colaborador do projeto Flora do Brasil 2020, plataforma que identifica as espécies vegetais brasileiras. “A preocupação com o Cerrado basicamente se restringe às pessoas da academia. Ele é visto apenas como um celeiro, que precisa produzir alimento para o Brasil e o mundo, mas sua flora e biodiversidade são absolutamente ricas.”
A vegetação tortuosa, em solo considerado infértil, era de pouco interesse para a agricultura. Isso mudou nos anos 1970, quando a Embrapa revolucionou o uso da terra no bioma. A ‘correção’ do solo com uso de calcário o tornou produtivo e deu início a plantações de soja, milho e algodão, principalmente nas regiões de platô.
O Cerrado então passou a ser cobiçado para cultivos e negligenciado na legislação. Na Constituição de 1988, o parágrafo 4º do artigo 225 já ignorava sua existência como patrimônio natural do Brasil. Em 2012, o Novo Código Florestal estabeleceu que as propriedades precisavam preservar apenas 20% de área como reserva legal – 35% em terras na Amazônia Legal – e praticamente decretou sua morte, não fosse alguma proteção posteriormente determinada por leis estaduais, mas que ainda não conferem ao Cerrado o seu real valor.
“É cômodo para a população, para os políticos brasileiros, deixar o Cerrado e a Caatinga, que são os patinhos feios do país, para plantar soja, para fazer agricultura em larga escala. As leis de proteção desses biomas são muito mais lenientes do que as leis de florestas”, diz Walter.
De acordo com a Coleção 6 do MapBiomas, que analisa de forma detalhada a ocupação e uso da terra no país, entre os anos de 1985 e 2020, a agricultura do Cerrado passou de 4 para 23 milhões de hectares. Já a pecuária foi de 38 para 47 milhões de hectares no mesmo período. Juntas, ocupam atualmente 44,2% do território e são responsáveis por 98,8% do desmatamento do bioma. Ainda segundo o relatório, restam hoje 54,4% de vegetação nativa de Cerrado. Mas o estrago pode ser ainda maior. Há quatro décadas, Walter vai a campo para coletar amostras de plantas para estudos da flora do bioma. Para ele, a qualidade de vegetação que tem visto ao longo dos anos, andando pelo Cerrado, dá indícios de um cenário mais grave.
“Eu não acho que tenha mais de 30% de Cerrado original, de áreas efetivamente boas, sendo que temos poucas unidades de conservação, proporcionalmente a outros biomas, e a maioria delas tem problemas”, diz Walter. “Por mais tecnologia que tenhamos, o satélite tem dificuldade de diferenciar áreas abertas de campo.”
Berço das águas
Pensar em Cerrado é pensar em água – o bioma é berço de nascentes que alimentam oito das 12 grandes bacias hidrográficas brasileiras e ainda abriga importantes áreas de recarga hídrica. Também é lá onde ficam as cabeceiras dos rios que formam a maior planície alagada do planeta, o Pantanal.
“Quanto mais diversidade de espécies de plantas, raízes e ocupações diferentes, maior será a quantidade de água armazenada debaixo da terra. Quanto mais rico um trecho, mais água será absorvida pelos lençóis freáticos”, explica Walter. “As chuvas podem continuar as mesmas se preservarmos a Amazônia, mas, sem o Cerrado, não há o armazenamento dessa água.”
O biólogo e professor associado da Universidade de Brasília (UnB) Reuber Brandão fez um monitoramento de longo prazo de populações de anfíbios e lagartos, acompanhando processos de extinção associados a alterações profundas do ambiente em diversos pontos do Cerrado. Na região da represa de Serra da Mesa, por exemplo, houve uma perda de biodiversidade muito acelerada de anfíbios. Cerca de 50% em apenas três anos. “Lagartos são um pouco mais resistentes. Ainda assim, das 14 espécies que existiam em ilhas na época da formação do lago da hidrelétrica, restaram somente três. A mudança na paisagem tem um efeito fortíssimo sobre esses animais”, explica o pesquisador.
Ovos de anfíbios não têm casca e ficam diretamente em contato com a água, absorvendo tudo o que está nela. A pele do girino é sensível a qualquer troca com o ambiente. Quando adulto, ele deixa o meio exclusivamente aquático, mas continua com a pele permeável. Por consumir insetos, tornam-se esponjas de toxinas, sejam elas do ar, da água ou do alimento. Por isso os anfíbios são excelentes indicadores de qualidade ambiental. “Onde esse bicho está, ali tem boa qualidade. Por isso usamos a presença do sapo para chamar a atenção para a conservação da água, das primeiras cabeceiras – conservar córregos, riachos que vão ser utilizados pelos proprietários rurais”, diz Brandão. “Com isso, tentamos convencê-los a criar reservas particulares de proteção das nascentes.”
Em sua dinâmica natural, o Cerrado não entra em dormência na estação seca. “Quando trocamos isso por uma agricultura intensiva, muda-se o funcionamento do sistema, os ciclos geoquímicos do Cerrado”, explica o ecólogo Daniel Luis Mascia Vieira, pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia. “Assim, temos mais enchente, menos infiltração do solo; falta água na época seca e podemos ter insegurança hídrica.”
Segundo ele, a pressão da fronteira agrícola também tem impactos profundos na fauna e flora. “Quando o Cerrado é trocado pela agricultura, acabou, não tem mais biodiversidade”, diz. “O ideal é manter corredores ecológicos, áreas de reserva legal para ter conexão, fluxos de animais, de plantas.”
Mas o bioma conhecido por ser um mosaico de tipos de vegetação é hoje um grande quebra-cabeças de fragmentos de mata entrecortados por lavouras. Com pouca conectividade entre os trechos, que são pequenos e isolados, as reservas ficam mais suscetíveis a qualquer impacto – alterações climáticas, caça ilegal e fogo descontrolado.
Além disso, com a morte do bioma, também morrem culturas. “O agronegócio tem o seu valor, mas existem povos e comunidades tradicionais no Cerrado – é um hotspot de cultura”, diz Vieira. “Tem dezenas de comunidades que vivem desse ecossistema, e eles criam gado solto, cultivam nas beiras dos rios, têm sistemas agroflorestais, coletam frutos nativos. Há toda uma relação de uso do Cerrado com pouco impacto, pouca transformação ambiental.”
Para os pesquisadores entrevistados pela reportagem, o bioma pode sim ser usado para produção agropecuária, mas ela tem que andar junto dos esforços de conservação. “Não sou radical, temos que produzir, mas esse equilíbrio entre produção e conservação tem sido muito fragilizado pelas técnicas de agricultura de grande extensão, que passa o correntão e elimina absolutamente tudo que vê pela frente, principalmente em áreas planas”, diz Walter, colaborador do projeto Flora Brasil. “As áreas de conservação do Cerrado começam a se restringir a morros de pedra, onde não dá para fazer agricultura, e faixas de mata de galeria, que não é onde está a riqueza do Cerrado. Ela está nas suas áreas de savana, e justamente essa parte do bioma não tem proteção alguma, é ela que está indo embora.”
Para Reuber Brandão, biólogo da UnB, “a gente tem que entender que o território é coletivo e pertence à sociedade brasileira, portanto não pode ser dado à um único setor nacional”, diz ele. “Se tem que aumentar a produção e a infraestrutura, não tem problema, desde que isso seja acompanhado de ações para a conservação da biodiversidade.”
Recuperação do Cerrado
Está comprovado: o Cerrado está ficando mais seco e mais quente. Um estudo publicado na revista científica Global Change Biology mostrou que a elevada supressão de vegetação nativa, somada a incêndios de grandes proporções, tem provocado elevação das temperaturas, o que prejudica ciclos de fotossíntese, absorção de luz e formação de orvalho, muitas vezes a única fonte de água para insetos polinizadores, cruciais para a manutenção da biodiversidade durante a estação seca. O resultado poderá ser uma reação em cadeia, que levará o Cerrado ao colapso em apenas 30 anos, caso as tendências de aumento médio de temperatura observadas continuem. Recuperar o bioma é preciso, e urgente.
“Tem muita área no Cerrado que pode ser mais bem utilizada se for mais bem manejada, com técnicas de agricultura mais eficientes, menos monoculturas extensas que precisam de muito agrotóxico e adubos químicos”, avalia Walter. “O custo ambiental disso não vem na hora, mas ele chega. É toda uma cadeia de problemas que enriquece apenas um grupo pequeno de pessoas.”
Daniel Luis Mascia Vieira, pesquisador da Embrapa, trabalha com técnicas de restauração de pastagens e ressalta que há uma grande oportunidade de colocar elementos de conservação dentro das áreas de produção. “Uma pastagem pode ser só capim exótico ou pode ser uma pastagem com centenas de árvores nativas, que podem auxiliar na produção, mantendo a água, melhorando a qualidade do solo. Dá para conciliar e ter uma intensificação de produção mais sustentável”, diz ele, reforçando que isso não se aplica às grandes plantações. “A agricultura não. É todo um sistema construído para ser monocultura.”
Para planejar a restauração é preciso mapear as áreas destinadas para recuperação, prioritariamente pastagens degradadas, em áreas de pouca chuva e sem valor para a agricultura, como declives. A recuperação da produtividade salva áreas para a conservação. “Quando falamos de restauração, estamos falando em recuperar a produtividade do solo”, continua Vieira. “Temos, por exemplo, um pasto que não produz quase nada ou tem uma pecuária extensiva, com um boi por hectare; podemos intensificar esse hectare com mais bois, com melhor manejo desse gado e, assim, manter uma parte de Cerrado. Pode-se ainda fazer agricultura intensiva, ou um revezamento do cultivo com pasto, que é superprodutivo.”
A fim de estimular as boas práticas, a Embrapa criou selos de certificação dos produtos provenientes de pastagens mais sustentáveis. O Carne Carbono Neutro identifica a produção que sequestra e não libera carbono e o Carne Carbono Nativo, pastagens que, além de não emitirem CO2, são compostas por árvores nativas. “Vamos avançando, tanto do ponto de vista de pesquisa, quanto de marketing e de atingir o mercado consumidor. Eu acho que as sociedades, brasileira e internacional, cada vez mais, vão querer que façamos uma agricultura conservacionista”, ressalta Vieira. Implementar práticas agrícolas mais amigáveis requer trabalhar em todas as esferas. “Tem que haver incentivos econômicos e fiscais para que produtores rurais possam se adaptar, adotar novas tecnologias, restaurar. Prover assistência técnica e capacitação, encontrar canais de escoamento da produção para onde se agregue valor à biodiversidade, à sustentabilidade. E, claro, precisamos destinar recursos para pesquisas, aprender a fazer melhor continuamente.”
Unidades de conservação
A porcentagem de unidades de conservação (UC) no Cerrado é 8,3%. Tratam-se de porções territoriais com limites definidos instituídas pelo poder público ou iniciativa privada de forma voluntária, com o objetivo de conservar um espaço natural, sua biodiversidade e seus recursos.
Para Brandão, não dá para falar em conservação de biodiversidade sem uma política que reserve áreas específicas, com transformação mínima da ocupação de território, com o objetivo de manter as condições necessárias para que processos ecológicos e evolutivos continuem acontecendo, mesmo que em escala reduzida.
“Não tem uma solução única para um contexto tão complexo quanto o Cerrado. Tem vastas regiões do bioma – no Maranhão, Piauí, Bahia e Tocantins – onde ainda se pode criar UCs de proteção integral – são elas que vão segurar o Cerrado”, explica Brandão. “Nas áreas mais degradadas, devemos pensar em recomposição de mata de galerias, regeneração dos ecossistemas e conectividade dos fragmentos; proprietários rurais que mantém áreas protegidas em suas propriedades também precisam ser bem remunerados por isso.”
Embora sejam reconhecidas internacionalmente como as ferramentas mais eficientes para garantir a conservação da biodiversidade, as unidades de conservação vêm sofrendo constantes ataques no país. Em agosto, foi protocolado na Câmara dos Deputados um projeto de decreto legislativo que reduziria em até 73% a área do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás, ao revogar decreto de 2017 que ampliou a área de 65 mil para 245 mil hectares. O local é um dos últimos refúgios para diversas espécies e tem formações vegetais singulares.
“Esse lobby forte que existe no agronegócio tenta criar uma narrativa de que a única maneira de desenvolver o Brasil é produzir commodities em grandes proporções, quando, na verdade, existe um potencial gigantesco no Brasil de usar a biodiversidade para se tornar uma potência biotecnológica, produtos que com pouco investimento entram no mercado internacional”, argumenta Brandão. “Quando a gente não valoriza e não conserva a biodiversidade, perdemos oportunidades de criar produtos alimentícios, cosméticos, medicamentos e muitos outros.”
De fato, o investimento em alternativas que conciliem potencial biológico, diversidade de cadeias produtivas, respeito às comunidades, estratégias de recuperação e proteção da natureza e práticas agrícolas sustentáveis parece ser o único caminho para evitarmos o colapso do Cerrado.
“É uma questão civilizatória, de futuro da sociedade e do país. Se nós perdermos o Cerrado, se perdermos a capacidade produtiva agrícola, a biodiversidade do bioma, vamos caminhar para o empobrecimento cada vez maior do país”, defende Brandão. “A gente tem que valorizar os nossos ambientes naturais não só sob o ponto de vista ecológico, mas como nossa essência, nossa história, o nosso reconhecimento como sociedade e nossa identidade como povo. Um país tão grande deve se unir, compreender que precisa haver espaço para todo mundo, entender o valor intrínseco da vida.”
Ameaças ao Cerrado (WWF):
Adaptado de: https://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/questoes_ambientais/biomas/bioma_cerrado/bioma_cerrado_ameacas/
Depois da Mata Atlântica, o Cerrado é o ecossistema brasileiro que mais alterações sofreu com a ocupação humana. Um dos impactos ambientais mais graves na região foi causado por garimpos, que contaminaram os rios com mercúrio e provocaram o assoreamento dos cursos de água (bloqueio por terra). A erosão causada pela atividade mineradora tem sido tão intensa que, em alguns casos, chegou até mesmo a impossibilitar a própria extração do ouro rio abaixo. Nos últimos anos, contudo, a expansão da agricultura e da pecuária representa o maior fator de risco para o Cerrado.
As duas principais ameaças à biodiversidade do Cerrado estão relacionadas a duas atividades econômicas: a monocultura intensiva de grãos e a pecuária extensiva de baixa tecnologia. O uso de técnicas de aproveitamento intensivo dos solos tem provocado, há anos, o esgotamento dos recursos locais. A utilização indiscriminada de agrotóxicos e fertilizantes tem contaminado também o solo e a água. Os poucos blocos de vegetação nativa ainda inalterada no Cerrado devem ser considerados prioritários para implementação de áreas protegidas, já que apenas 0,85% do Cerrado encontra-se oficialmente em unidades de conservação.
Mas o problema do Cerrado não se resume apenas ao reduzido número de áreas de conservação ou à caça ilegal, que já seriam questões suficientes para preocupação. O problema maior tem raízes nas políticas agrícola e de mineração impróprias e no crescimento da população. Historicamente, a expansão agropastoril e o extrativismo mineral têm se caracterizado por um modelo predatório. A ocupação da região é desejável, mas desde que aconteça racionalmente.
A destruição e a fragmentação de habitats consistem, atualmente, na maior ameaça à integridade desse bioma: 60% da área total é destinada à pecuária e 6% aos grãos, principalmente soja. De fato, cerca de 80% do Cerrado já foi modificado pelo homem por causa da expansão agropecuária, urbana e construção de estradas – aproximadamente 40% conserva parcialmente suas características iniciais e outros 40% já as perderam totalmente. Somente 19,15% corresponde a áreas nas quais a vegetação original ainda está em bom estado.
Impactos ambientais causados pela degradação do Cerrado:
- Aumento das emissões dos gases de efeito estufa;
- Aumento das queimadas;
- Extinção de diversas espécies de plantas e animais;
- Mudanças climáticas (seca);
- Contaminação dos rios;
- Contaminação do solo e da água;
- Erosão;
- Esgotamento dos recursos naturais.
Ameaças ao Cerrado (ICMBio):
Disponível em: https://www.icmbio.gov.br/cbc/conservacao-da-biodiversidade/ameacas.html
O Cerrado é uma das 25 áreas do mundo críticas para a conservação devido a sua rica biodiversidade e à alta pressão antrópica que vem sofrendo (MMA, 2002). A crescente ocupação humana vem alterando a paisagem natural ao longo do tempo, formando um mosaico de áreas em diversos estágios de ocupação e perturbação, podendo causar perda da diversidade de espécies e variabilidade genética (Brown Jr. & Gifford, 2002). Segundo Coutinho (2000), cerca de 45% da área do Domínio do Cerrado foi convertida em pastagens cultivadas e lavouras diversas. Apenas 1,2 % está em área protegida (Scariot & Sevilha, 2003). No Estado de São Paulo, nos últimos 20 anos, mais de 95% da área de campos e campos cerrados foi destruída para a formação de pastagens e agricultura (Martins, 2001). Neste cenário de taxas crescentes de conversão de ambientes naturais em antrópicos, perde-se muito da diversidade específica destas áreas, sem conhecimento. Embora possa ocorrer um aumento da diversidade em ambientes heterogêneos, em regimes de perturbação natural, ações antrópicas podem ocasionar erosão gênica e diminuição da diversidade de espécies, podendo causar grandes perdas em populações, comunidades e ecossistemas.
Em relação à biota aquática das bacias hidrográficas do Cerrado, as principais ameaças são o desmatamento, a poluição industrial e doméstica, os insumos aplicados à agricultura, a construção de barragens e aterros, que modificam os hábitats necessários à sobrevivência dessa fauna (Ribeiro, M.C.L.B., 2007). O represamento é o fator antrópico mais dramático que afeta os ambientes fluviais, pois estes são definidos grandemente pela sua hidrologia. Alterações no regime de fluência em rios por atividades humanas causam mudanças na composição de espécies, na densidade populacional, no movimento da biodiversidade, influenciam a qualidade da água, o hábitat físico e as interações bióticas (Saunders et al. 2002; Park et al. 2003). O impedimento da migração e do deslocamento causado pelas barreiras também isola as populações, aumentando a taxa de extinção por meio de eventos estocásticos, genéticos, demográficos e ambientais (Morita & Yamamoto, 2002). Essas pressões ambientais têm levado à degradação do hábitat fluvial, onde muitas espécies correm o risco de desaparecer em futuro próximo (Saunders et al. 2002). Na América do Sul, o represamento de rios é a prática mais comum nas bacias hidrográficas, especialmente para a produção de eletricidade. Atualmente, quase todas as grandes bacias são represadas ou influenciadas em algum grau por barragens e reservatórios. Estimativas indicavam, em 2000, a existência de mais de 700 grandes reservatórios somente no Brasil (Pringle et al, 2000). O uso da água para a irrigação também pode afetar a sobrevivência das espécies fluviais, assim como o tráfego intensivo e não-regulamentado de embarcações, enquanto os animais estão se alimentando e descansando, pode causar prejuízos em longo prazo para essas populações (Reeves et al., 2003).
A primeira lista de espécies da flora ameaçada de extinção foi publicada em 1992 (Portaria no. 37-N, 3/04/1992, identificando 108 espécies de plantas vasculares ameaçadas. Em 2005, a nova revisão da lista, da Fundação Biodiversitas, aumentou para 1550 espécies (subespécies e variedades) ameaçadas da flora, sendo 580 delas reportadas para o Cerrado. A lista do IBGE (2005), entretanto, incrementou a lista em 45 táxons ameaçados para o bioma Cerrado, totalizando 624 táxons específicos e infra-específicos, sendo 453 dicotiledôneas, 156 monocotiledôneas e 15 pteridófitas (Rivera et al. 2010). Em relação à fauna, são 138 as espécies ameaçadas para o bioma Cerrado, dos quais 43 são invertebrados e 95 são vertebrados.
CAATINGA
Único bioma 100% brasileiro, Caatinga esconde riquezas naturais subestimadas
Para muito além de cactos e solo rachado, o semiárido com maior densidade populacional do mundo abriga alto índice de espécies endêmicas, mas perdeu mais de 40% da vegetação nativa.
Disponível em: https://www.nationalgeographicbrasil.com/natgeo-ilustra/caatinga
Um grupo de aves brasileiras extintas na natureza será reintroduzido em seu habitat natural nos primeiros meses de 2021. Uma delas é a ararinha-azul, pássaro vistoso de pouco mais de 50 cm de comprimento que havia desaparecido na natureza em 2000 por conta da ação de caçadores e traficantes de animais. O caso é emblemático entre os esforços de conservação no país, mas este é apenas o começo.
A Caatinga é a região semiárida com maior densidade populacional do mundo e funciona como zona de transição entre Mata Atlântica e Amazônia, abrigando espécies dos dois biomas.
Endêmica da Caatinga, o único bioma brasileiro que ocorre de maneira exclusiva no país, a bela ararinha-azul pode ser vista como um símbolo da biodiversidade da região, subestimada ao longo da história. “Muitos de nós mais ao sul do país temos no imaginário coletivo a Caatinga como uma área pobre, de solos rachados e cactos, onde a vida quase não é possível”, diz Hugo Fernandes, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), que pesquisa mamíferos de grande porte. “Na verdade, este bioma negligenciado é muito rico e tem um nível de endemismo muito alto.” A região em que a Caatinga ocorre – todo o Nordeste do Brasil, mais um pedaço de Minas Gerais – ocupa um décimo do território nacional e foi protagonista na época da colonização portuguesa. Mesmo assim, sua riqueza animal e vegetal é pouco conhecida pelo grande público. “Sem bairrismo, posso dizer que a Caatinga é o mais brasileiro dos biomas”, afirma Daniel Fernandes, coordenador-geral da Associação Caatinga.
De acordo com estudo publicado em 2018, o bioma conta com 371 espécies nativas de peixes, 98 de anfíbios, 224 de répteis, 548 de aves e 183 mamíferos. Em relação à flora, outro inventário taxonômico indica a existência de quase 3,2 mil espécies, com uma taxa de endemismo de 23% – ou seja, mais de um quinto dessas plantas só existem por ali.
Terra branca
O nome Caatinga vem do tupi e se traduz em “terra branca”, uma referência ao modo como o sol penetrava no mato durante o período de seca, quando havia o desfolhamento das plantas. O termo, no entanto, traz uma miríade de significados, dentre eles tanto o bioma quanto um tipo específico de vegetação. “As pessoas fazem uma interpretação comumente errônea e confundem semiárido e domínio climático com o tipo de vegetação”, diz Francisca Soares, coordenadora do programa de Pós-Graduação em Ecologia e Recursos Naturais da UFC. A pesquisadora explica que a região comporta vários tipos de vegetação diferentes. Um dos menos discutidos é o carrasco, que Soares pesquisa desde o início da década de 1990. Caracterizado por árvores arbustivas entre 2 e 5 metros de altura emaranhadas em tal densidade que é difícil caminhar por dentro, o carrasco era tido como uma espécie de cerradão – um dos tipos de vegetação do bioma Cerrado – degradado.
“Havia pouco conhecimento. Demonstramos que o carrasco possui vegetação e composição florística próprias”, explica ela. Na comparação com a vegetação da Caatinga propriamente dita, o carrasco é mais rico. “É uma fisionomia mais densa, há 5 mil indivíduos por hectare, enquanto [no resto da] Caatinga são 2 mil.”
Há também uma inversão no tipo de plantas presentes. Por se tratar de um mato aberto, a Caatinga tem uma presença maior de herbáceas – de 60 a 70 espécies por hectare, contra de 20 a 30 no carrasco. Se o objeto de comparação forem árvores lenhosas de maior porte, os números se invertem: 50 a 70 espécies no último, contra 20 a 30 na primeira. “A riqueza da Caatinga está no componente herbáceo e do carrasco no componente lenhoso”, afirma Soares, que cita o pau-branco, endêmico do bioma, como uma árvore característica desta segunda vegetação, assim como uma espécie de aroeira, o mofumbo e a caatingueira.
Espécies endêmicas
Para se ter uma melhor ideia da biodiversidade do bioma, vale citar a Chapada Diamantina, um dos principais destinos de ecoturismo no país. “Na parte baixa da Chapada, encontra-se a Caatinga. Nas encostas, uma vegetação semelhante à Mata Atlântica. E, no topo, o Cerrado”, conta Adrian Antonio Garda, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Especializado em répteis e anfíbios, o professor conta que o grupo que trabalha em seu laboratório tem artigos com a descrição de quatro novos sapos para publicação. Entre eles, um animal descoberto no topo da Chapada Diamantina que só existe por ali, primo de outra espécie endêmica da Caatinga, o Corythomantis greeningi.
Assim como o primo já conhecido, o novo sapo tem uma característica interessante: ele é capaz de inocular veneno por meio de microespinhos no crânio. “Foi a primeira espécie de sapo peçonhento do mundo, e agora vemos que esse grupo na verdade são várias espécies”, detalha Garda. A descrição de novas espécies de sapos faz com que a taxa de endemismo para o grupo aumente – dos 98 animais conhecidos no bioma hoje, 20 são encontrados apenas por lá. Há também um endemismo alto entre serpentes (22 de 112 espécies conhecidas). Essa relação dá um salto quando se fala em lagartos e chega a quase 50%. “É impressionante”, conta o professor da UFRN, que destaca a região das Dunas do São Francisco, onde há um número significativo de serpentes e lagartos endêmicos. Entre eles, o Scriptosaura catimbau. O pequeno lagartinho praticamente sem patas deixa desenhos na areia conforme se locomove, por isso o scripto no nome.
Quando o quesito são nomes populares, no entanto, esses animais ficam devendo na imaginação. Garda aponta uma citação histórica do zoólogo e sambista Paulo Vanzolini. “O sertanejo”, teria dito Vanzolini em referência às pessoas que moravam no interior, “é um excelente botânico [plantas], um mastozoólogo [mamíferos], um ornitólogo [aves] razoável e um péssimo herpetólogo [répteis]”. Para Garda, “as pessoas não têm interesse, só entendem melhor os bichos e plantas que têm alguma utilidade”.
Vida aquática
Os peixes, por sua vez, costumam ser bastante úteis. Com nível de endemismo significativo (209 das 386 espécies observadas no bioma são exclusivas dali), os rios são um tesouro, não só pela vida que contém, mas também pela água rara nas áreas do semiárido. No São Francisco, bacia mais famosa da região, vale citar o endêmico pacamã, uma espécie de bagre de corpo achatado e boca larga, que chega a mais de 70 cm e 5 kg.
Mas, claro, novas espécies têm sido descobertas a todo momento. “De 2003, quando fizemos o primeiro levantamento de peixes da Caatinga, para o último, publicado em 2008, o número aumentou em mais de 100 espécies”, diz Sérgio Lima, do Laboratório de Ictiologia Sistemática e Evolutiva da UFRN. Recentemente, Lima contribuiu para a descrição de duas novas espécies de pequenos cascudinhos. Uma delas, encontrada na bacia do rio Paraíba, ganhou um nome curioso graças a uma lenda da região – Parotocinclus cabessadecuia. Diz a história que, no Paranaíba, uma entidade foi amaldiçoada a viver como um monstro subaquático até capturar sete virgens. O nome do bicho? Cabeça de cuia. “Como o cascudinho tem uma cabeça arredondada formada por placas ósseas que parecem uma pequena cuia, serviu de inspiração”, relata ele.
Outra singularidade é que os felinos habitantes da Caatinga são menores em relação aos equivalentes de outras regiões, explica Hugo Fernandes, da UFC. “Há um padrão muito interessante. Como os recursos não são tão abundantes, nossos animais tendem a ser bem menores”, afirma ele. “As onças-pardas, apesar de termos poucas medidas, tem diferença entre 10 a 20 kg em relação às onças do Pantanal. As onças-pintadas, cujas maiores concentrações no bioma estão na Serra da Capivara, pesam entre 60 e 70 kg, enquanto um macho adulto no Pantanal chega a 140 kg.”
Invasores
Uma das árvores mais emblemáticas da Caatinga é a carnaúba, palmeira endêmica do bioma. Ela é uma ótima referência do potencial de exploração econômico sustentável da biodiversidade. “Como há um longo período de seca, a flora tem uma série de adaptações para sobreviver. A carnaúba, por exemplo, tem uma cera que impermeabilizada suas palhas, evita a transpiração e faz com que ela perca menos água no período seco”, explica Daniel Fernandes, da Associação Caatinga.
Essa cera, o óleo de carnaúba, está por todos os lados – é utilizada pelo setor de cosméticos, de tintas e polimentos automotivos, da indústria alimentícia e de dispositivos para computadores. Tal cenário faz com que a espécie tenha uma importância social e econômica significativa para habitantes das regiões onde ela é explorada. No passado, o óleo chegou a ser o quinto item de exportação do Ceará. Hoje, está na oitava posição. “A extração é feita de forma sustentável, retira-se a palha e deixa-se o olho. Em seguida, tudo rebrota”, detalha Fernandes. “É uma atividade que gera emprego para cerca de 100 mil pessoas no Ceará, Rio Grande do Norte e Piauí, justamente no período da seca.”
Mesmo assim, a carnaúba corre risco. A unha-do-diabo, uma trepadeira originária de Madagascar, foi trazida ao Brasil para ser utilizada como ornamento, mas chegou à natureza e se adaptou muito bem à Caatinga. Ela se instala sobre a vegetação local, como a carnaúba, cria sombras que impedem a fotossíntese e acaba por matá-la. “Nós ainda não temos dados quantificando a perda de produtividade, mas já vemos várias áreas de carnaubais morrendo ou totalmente ocupadas pela unha-do-diabo”, observa a professora Francisca Soares, da UFC. Enquanto a trepadeira de Madagascar se espalha, Soares alerta para outra espécie exótica: o nim, uma árvore asiática utilizada na arborização de cidades como Fortaleza, com alto potencial invasivo. Nem sempre, no entanto, os invasores vêm de longe. Diversos pesquisadores estudam qual o impacto da transposição do rio São Francisco nas bacias do Paraíba do Norte, Jaguaribe e Piranhas-Açu. Além de mudar o regime hídrico, com a transformação de rios temporários em perenes, há uma expectativa em entender se espécies de peixes chegarão a essas outras regiões e qual o impacto isso traria para as populações locais.
Uma pesquisa de doutorado de modelagem de nicho ecológico orientado pelo professor Sérgio Lima, da UFRN, sugeriu que há um potencial que 20% das espécies do São Francisco se estabeleçam nessas outras bacias. No projeto de transposição, há barreiras ecológicas que deveriam impedir esse movimento. Porém, no Paraíba do Norte, banhado pelo canal leste da transposição, o único com obras terminadas, já foram encontrados peixes do São Francisco. “Isso sugere que as barreiras não são 100% efetivas”, afirma Lima. “O objetivo não é assumir uma postura contrária à transposição, mas fazer estudos, ter cautela.”
Exploração histórica
Problemas de conservação na região, entretanto, não são novos. Com a perda de mais de 40% na área de vegetação nativa, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente (MMA), a Caatinga é um bioma que sofre investidas humanas desde o início da colonização portuguesa, quando foi a primeiro trecho interiorano explorado no país. Conforme o primeiro ciclo econômico se estabelecia baseado na criação de gado – o que demandava abertura de pasto –, a colonização se intensificava. Para se ter uma ideia, atualmente a Caatinga é a região semiárida com maior densidade populacional do mundo.
“O bioma era muito mais rico do que hoje em dia, mas o nível de pobreza extrema causou uma pressão de caça nunca antes vista no Brasil”, explica Hugo Fernandes, que pesquisa a exploração histórica da fauna da Caatinga. Séculos atrás, as onças-pintadas e queixadas eram comuns, assim como as antas. Hoje, tais espécies já não se encontram mais por ali.
Hoje, pesquisadores trabalham com iniciativas que incluem ações educativas com populações locais para reduzir a caça de determinadas espécies ameaçadas, como o tatu-bola da caatinga. Para exemplificar a dificuldade dessa tarefa, no entanto, Fernandes cita o caso do mocó, um pequeno roedor endêmico que pesa menos de 1 kg. “Ele se reproduz muito, tem um período de gestação supercurto, território pequeno: não tinha nenhum motivo para estar sob risco. Mas a pressão da caça é tão forte que o mocó está ameaçado de extinção”, argumenta o professor.
Ameaças à Caatinga (WWF):
Disponível em: https://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/questoes_ambientais/biomas/bioma_caatinga/bioma_caatinga_ameacas/
O homem complicou ainda mais a dura vida no sertão. Fazendas de criação de gado começaram a ocupar o cenário já na época do Brasil Colônia. Os primeiros habitantes não entendiam muito sobre a fragilidade da Caatinga, cuja aparência árida denuncia uma falsa solidez. No combate à seca, foram construídos açudes para abastecer de água os homens, seus animais e suas lavouras. Desde o Império, quando essas obras tiveram início, o governo prossegue com o trabalho.
Os grandes açudes atraíram ainda mais colonos, que estabeleceram novas fazendas de criação de gado. Em regiões como o Vale do São Francisco, a irrigação foi incentivada sem o uso de técnica apropriada. O resultado foi a salinização do solo. O problema acaba agravado pelas características da região, com solos rasos e intensa evaporação de água provocada pelo forte calor. A agricultura nessas áreas tornou-se impraticável.
Outro problema é a contaminação das águas por agrotóxicos. Depois de aplicado nas lavouras, o agrotóxico escorre das folhas para o solo, levado pela irrigação, e daí para as represas, matando os peixes. Nos últimos 15 anos do século XX, aproximadamente 40 mil km2 de Caatinga se transformaram em deserto devido à interferência do homem sobre o meio ambiente da região. As siderúrgicas e olarias também são responsáveis por este processo, devido ao corte da vegetação nativa para a produção de lenha e carvão vegetal.
O sertão nordestino é uma das regiões semi-áridas mais povoadas do mundo. A diferença entre a Caatinga e áreas com as mesmas características em outros países é que, nessas outras regiões, as populações costumam concentrar-se onde existe água. No Brasil, entretanto, o homem está presente em toda a parte, tentando garantir a sua sobrevivência na luta contra o clima.
Ameaças à Caatinga (ISPN):
Disponível em: https://ispn.org.br/biomas/caatinga/ameacas-a-caatinga/
O ícone musical nordestino, Luiz Gonzaga, retrata bem a dificuldade daqueles que vivem no Semiárido: “Quando olhei a terra ardendo. Qual fogueira de São João. Eu perguntei a Deus do céu, ai. Por que tamanha judiação. (…) Que braseiro, que fornalha. Nem um pé de plantação. Por falta d’água perdi meu gado.
Morreu de sede meu alazão”. Essa é a realidade que muitos catingueiros aprenderam a conviver. Muitos já desistiram, buscando oportunidades em outros estados brasileiros, inclusive em movimentos massivos de êxodo rural. Porém, os que ficam na esperança de dias melhores, mesmo com os desafios, os enfrentam de maneira bastante criativa, utilizando tecnologias inovadoras para a convivência com essa terra que arde.
Para além de condições naturais adversas, há um histórico de práticas que agravaram a degradação desse bioma. Foram anos de exploração de madeira (para produção de gesso, olarias, carvoarias etc.), desmatamentos, queimadas, pastoreio excessivo de gado, práticas agrícolas inadequadas, como monoculturas e uso de agrotóxicos e adubos químicos, e outras tantas ações que contribuíram para a deterioração da Caatinga, e que tem ocasionado sua desertificação¹, empobrecimento do solo, redução da biodiversidade e, consequentemente, piora na qualidade de vida da população.
O principal agravante da desertificação é a degradação da vegetação nativa. Nesse sentido, os dados são alarmantes, uma vez que quase 46% da Caatinga foi desmatada até 2008². Somente o estado de Alagoas já contabiliza 82% de área nativa desmatada. Essas altas porcentagens chamam a atenção, fazendo do desmatamento uma das principais ameaças ao bioma. Diferentemente do Cerrado e da Amazônia, na Caatinga a agropecuária não é a principal causa desses dados, mas sim o consumo de lenha e carvão vegetal para fins energéticos, principalmente de madeira oriunda do desmatamento ilegal. Segundo estudo feito na Paraíba em 2012, 56% da demanda de lenha industrial/comercial era atendida com oferta de madeira proveniente de desmatamentos ilegais³.
Embora não seja o principal vetor do desmatamento, a agropecuária⁴ também representa grave ameaça à integridade do bioma, ao mesmo tempo que constitui importante base da economia da região. Desde o início das ocupações da Caatinga, foram adotadas práticas agrícolas que contribuíram para acelerar sua degradação, como: a supressão da vegetação nativa, uso indiscriminado do fogo, uso de insumos químicos, plantios em margens de rios e açudes e pastoreio excessivo. A contínua retirada de produtos florestais, sem reposição de nutrientes, diminui a fertilidade do solo e intensifica a degradação do bioma.
Com o advento da agricultura comercial no bioma, foram implantadas grandes áreas altamente dependentes de irrigação e de insumos externos e com produção voltada para a exportação, com impactos ainda maiores em termos ambientais e sociais. Um exemplo são os polos produtores de frutas tropicais. Os três principais estão localizados no Vale do submédio São Francisco, em Juazeiro-Petrolina, com produção de manga, uva, maracujá, mamão e banana; nos Vales do Açu e Apodi (RN), com produção de melão; e no Vale do Rio Jaguaribe (CE), onde são produzidos uva, melão, acerola, manga, graviola e caju. Outros cultivos comerciais relevantes no Semiárido são os de soja e mamona (para produção de biocombustíveis).
O principal vetor de pressão para as espécies da fauna ameaçadas na Caatinga é a agropecuária, que exerce pressão em 90 espécies, das 131 contabilizadas⁵. Algumas espécies estão praticamente extintas no bioma, como a ararinha-azul (restando alguns indivíduos em viveiros) e diversas outras estão ameaçadas, como o tatu-bola, a onça-parda e o soldadinho-do-Araripe⁶.
Um aspecto que apresenta certa vulnerabilidade refere-se ao fato de que apenas 8,8% do território da Caatinga está protegido por unidades de conservação (UC), das quais apenas 2,23% da área corresponde à categoria de proteção integral e 6,44% de uso sustentável⁷. Uma alternativa tem sido a criação, por meio de parcerias privadas, de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN), as quais correspondem a 35,6% das UCs na Caatinga, mas ainda algo muito incipiente.
Somado a essas questões, o aumento de temperatura ocasionado pelas mudanças climáticas também pode intensificar o processo de desertificação. Geradas pela emissão e acúmulo de gases de efeito estufa, potencializadas pelo desmatamento, as mudanças no clima afetam de forma mais drástica as regiões semiáridas, como a Caatinga, onde estão localizadas as Áreas Susceptíveis à Desertificação (ASDs) do país. Atualmente, essas áreas somam pouco mais de 1,3 milhão de km² e abrangem nove estados do nordeste e as regiões norte de Minas Gerais e do Espírito Santo⁸, ameaçando a vida de mais de 30 milhões de pessoas que ali residem.
Um estudo fez dois cenários até 2100, um otimista, em que todas as exigências do Protocolo de Kyoto de redução de gases de efeito estufa foram cumpridas; e um pessimistas, em que a redução não foi feita. No segundo caso, os resultados seriam catastróficos, uma vez que ocasionaria um aumento entre 2 e 5ºC no bioma⁸, o que agravaria ainda mais as condições de vida no Semiárido. Deve-se considerar que as modificações no ambiente intensificam ainda mais a ação dos efeitos climáticos que, por sua vez, também ocasionam degradação ambiental: um ciclo bastante destrutivo.
A vida na Caatinga tem seus desafios e dificuldades, mas se algo não for feito para minimizar essas ameaças, como políticas públicas e o comprometimento dos países com os acordos internacionais e envolvimento da sociedade como um todo, certamente a situação se agravará e será muito mais difícil conviver com o Semiárido. O êxodo rural irá aumentar, com todos seus impactos sociais provenientes, assim como as condições de vida da população se tornarão ainda mais precárias e a biodiversidade será afetada negativamente. Uma história muito triste para o único bioma exclusivamente brasileiro!
Referências:
(1) ALBUQUERQUE, Ulysses Paulino de; MELO, Felipe P. L.. Socioecologia da Caatinga. Cienc. Cult., São Paulo , v. 70, n. 4, p. 40-44, Oct. 2018 . Disponível em <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252018000400012>. Acesso em 21 jan. 2020.
(2) MMA. Monitoramento por Satélite do Desmatamento no Bioma Caatinga. Núcleo do Bioma Caatinga – DCBIO/SBF. Secretaria de Biodiversidade e Florestas. Disponível em <www.mma.gov.br/estruturas/203/_arquivos/cartilha_monitoramento_Caatinga_203.pdf>. Acesso em 21 jan. 2020.
(3) PAREYN, Frans; VIEIRA, José Luiz; GARIGLIO, Maria Auxiliadora (Org.). Estatística Florestal da Caatinga. – v.2, ago. 2015. Recife: Associação Plantas do Nordeste, v.1, 2008. Disponível em <https://www.mma.gov.br/publicacoes/biomas/category/61-Caatinga.html?download=1107:estat%C3%ADstica-florestal-da-Caatinga-ano-02,-volume-02>. Acesso em 21 jan. 2020.
(4) BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Subsídios para a elaboração do plano de ação para a prevenção e controle do desmatamento na Caatinga / Ministério do Meio Ambiente. Brasília, 2011. 128 p. Disponível em <www.mma.gov.br/estruturas/168/_arquivos/diagnostico_do_desmatamento_na_Caatinga_168.pdf>. Acesso em 21 jan. 2020.
(5) BRASIL. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Livro Vermelho da fauna brasileira ameaçada de extinção. Brasília, DF: ICMBio/MMA, 2018. Disponível em <www.icmbio.gov.br/portal/component/content/article/10187>. Acesso em 21 jan. 2020.
(6) EMBRAPA. Contando Ciência na WEB. Bioma Caatinga. Disponível em <www.embrapa.br/contando-ciencia/bioma-Caatinga>. Acesso em 21 jan. 2020.
(7) BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Dados consolidados. Disponível em <www.mma.gov.br/areas-protegidas/cadastro-nacional-de-ucs/dados-consolidados.html>. Acesso em 17 dez. 2019.
(8) BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Atlas das áreas susceptíveis à desertificação do Brasil / MMA, Secretaria de Recursos Hídricos, Universidade Federal da Paraíba; Marcos Oliveira Santana (org.). Brasília: MMA, 2007. Disponível em <www.mma.gov.br/estruturas/sedr_desertif/_arquivos/129_08122008042625.pdf>. Acesso em 21 jan. 2020.
PAMPA
O pampa agoniza: conheça as ameaças ao bioma do Rio Grande do Sul
Falta de políticas públicas que incentivem atividades econômicas sustentáveis colocam em risco essa vegetação pouco conhecida, mas tão rica e importante quanto qualquer outra
Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Meio-Ambiente/noticia/2021/06/o-pampa-agoniza-conheca-ameacas-ao-bioma-do-rio-grande-do-sul.html
02 JUN 2021 – 16H14 ATUALIZADO EM 02 JUN 2021 – 16H14
Enquanto o Pantanal e a Amazônia ardem em chamas vistas com olhos indignados e estupefatos do mundo todo, o pampa, bioma que ocupa metade sul do Rio Grande do Sul, todo o Uruguai e parte da Argentina, agoniza em silêncio — e longe dos holofotes. Todos os anos são destruídos, em média, 125 mil hectares da sua cobertura original com vegetação nativa campestre, que hoje ocupa apenas 33,6% dos 19,3 milhões de hectares de área total da região. Entre 1985 e 2018, a extensão em que ela foi suprimida chegou a 2 milhões de hectares, o que representa 24,3% do que havia no início desse período.
Esses números são do estudo “A agonia do pampa”, realizado pela Rede Campos Sulinos, composta por pesquisadores dedicados ao estudo da biodiversidade nessa parte do país. Eles analisaram uma série histórica de mapas anuais de cobertura e uso da terra no Brasil, desde 1985, divulgados no início de 2021 pelo Projeto de Mapeamento Anual da Cobertura e Uso do Solo do Brasil (MapBiomas). A conclusão é que o pampa é o segundo bioma mais alterado do país, atrás apenas da Mata Atlântica, que tem só 12% da sua área original preservada. Segundo o biólogo e consultor ambiental Eduardo Vélez Martin, da Rede Campos Sulinos, o trabalho focou em quantificar a área da vegetação campestre a cada ano, em todo o pampa e também em 160 cidades. “Foi uma radiografia completa do que está ocorrendo no bioma, que torna possível identificar os municípios e regiões em situação mais crítica e aqueles que ainda se encontram bem conservados”, conta Martin.
O estudo também avaliou a perda mais recente da vegetação nativa, depois da promulgação da Lei Federal 12.651/2012, que dispõe sobre a proteção aos biomas do país. “Infelizmente os resultados mostram que a negligência dos órgãos públicos na implementação desse importante dispositivo legal tem contribuído para o estado crítico para o qual o bioma se encaminha”, lamenta Martin. Em 2012, a área de vegetação nativa campestre preservada era de 7,2 milhões de hectares, o que representava 37,5% do total do bioma. Seis anos depois, haviam sido destruídos 753,6 mil hectares, chegando a 6,5 milhões de hectares ou 33,6% da região. Os pesquisadores alertam que, se esse ritmo de supressão continuar, em 2050 a área de vegetação campestre atual terá sido reduzida em mais da metade, ocupando somente 12,9% do pampa.
Mas o que está causando tudo isso? Uma lista de fatores. Além da falta de políticas públicas que valorizem os serviços ambientais, há necessidade de iniciativas que incentivem a pecuária, tendo em vista que essa atividade econômica é compatível com a sustentabilidade da região, assim como outras formas de cultivo. “Também faltam ações que garantam áreas de proteção ambiental ou outras que contemplem os diferentes tipos de ecossistemas presentes no bioma”, acrescenta o biólogo e doutor em Ciências Florestais Leonardo Deble, professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), no Rio Grande do Sul.
A aplicação da Lei Federal 12.651/2012 também é um entrave. O Art. 2º da norma estabelece que “as florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação nativa, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País”. Os campos gaúchos estão incluídos justamente nessas “demais formas de vegetação nativa”, o que é prejudicial na avaliação de especialistas. “Nota-se que predomina ainda na legislação uma linguagem que dá a entender que a proteção de florestas teria precedência ou maior importância do que a de outras formas de vegetação, e isso se reflete na prática, quando a lei precisa ser aplicada”, diz o agrônomo Valerio De Patta Pillar, professor do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A isso se soma, de acordo com Pillar, a negligência do governo estadual em aplicar a legislação federal, principalmente a de proteção da vegetação nativa campestre. “Em 2015, cedendo a pressões do setor produtivo, o governador [José Ivo Sartori] assinou um decreto estadual (nº 52.431/2015) prevendo que remanescentes de campos nativos usados pela pecuária poderiam ser considerados ‘área rural consolidada por supressão de vegetação nativa com atividades pastoris’, uma categoria esdrúxula não prevista na Lei federal 12.651/2012”, critica o docente da UFRGS. Acontece que a criação de gado não suprime a vegetação nativa campestre. “Ao contrário, a mantém e é essencial para a conservação da biodiversidade típica desses ecossistemas”, assegura Pillar.
Mesmo assim, a pecuária no Rio Grande do Sul não recebe os incentivos necessários para acontecer de forma sustentável. “Com isso, vem perdendo terreno para a agricultura, muitas vezes praticada em locais com condições de solo e de clima considerados inadequados”, acrescenta Eduardo Vélez Martin. De fato, os dados do estudo A agonia do pampa confirmam o aumento da área destinada à produção agrícola, mas não só: também cresceram na região a silvicultura (plantio de árvores) e as pastagens cultivadas, principalmente destinadas à soja. Entre 1985 e 2018, o território da agricultura passou de 5,9 milhões para 7,4 milhões de hectares, ou de 30,7% para 38,3% do pampa. Já a silvicultura saltou de 79,9 mil hectares para 465,7 mil (0,4% para 2,4%) nesse período.
Uma das principais medidas apresentadas na pesquisa para ajudar a reverter o quadro atual é incentivar que a pecuária nos campos nativos seja reconhecida por políticas públicas e mecanismos de mercado como forma de produção sustentável e principal atividade mantenedora do pampa. Os pesquisadores recomendam ainda a criação de unidades de conservação, como Áreas de Proteção Ambiental (APA) e Áreas de Relevante Interesse Ecológico, ou de proteção integral, a exemplo do Refúgio de Vida Silvestre (REVIS) e do Monumento Natural (MONA). Nessas áreas, seria possível exercer a pecuária extensiva e outras atividades reconhecidas como sustentáveis sem necessidade de desapropriação. Entre as medidas sugeridas também está a realização de campanhas educativas e de alerta sobre a importância dos campos nativos — para todos os seres que os habitam.
Perdas irreversíveis
Para muitas pessoas, essa perda de vegetação nativa do pampa pode ser menos importante do que a de florestas. Afinal, imaginam, aquelas vastidões onduladas de campinas não devem ter uma grande biodiversidade. É um engano. “Os campos da bacia do Prata, do qual o pampa faz parte, são extremamente ricos em espécies”, destaca Deble. Inclusive, em termos de biodiversidade, eles podem ser comparáveis ao Cerrado, com a diferença de que têm menos árvores e mais gramíneas.
O número de plantas, por exemplo, é surpreendentemente grande, chegando a 4 mil espécies. “O pampa é o paraíso da vegetação herbácea, com mais de 2.150 [espécies] já catalogadas, das quais várias endêmicas, ou seja, que só são encontradas nesse bioma”, conta o docente da Unipampa. O especialista também ressalta que é notável a quantidade de cactos: são mais de 40 tipos.
A fauna é igualmente rica, com mais de 500 espécies de aves, sendo que cerca de 15% são exclusivas dos campos. Há ainda 100 espécies de mamíferos terrestres e uma diversidade de anfíbios e répteis ainda não totalmente inventariada. “Neste último grupo, destacam-se mais de 100 tipos de serpentes e de sapos, principalmente do gênero Melanophryniscus, dos quais cerca de 10 são exclusivos do pampa”, revela Deble.
A região também é abundante em peixes, que estão igualmente ameaçados. Merecem destaque diversas espécies endêmicas de peixes-anuais, principalmente a Austrolebias spp. Esses peixes são habitantes efêmeros de brejos e poças de água, dependentes das estações secas quando os adultos morrem e deixam os ovos que sofrem maturação, e das estações chuvosas quando os filhotes nascem e atingem a maturidade reprodutiva. A fauna de invertebrados ainda é pouco conhecida, mas diversos insetos, principalmente do gênero Cerambycidae, borboletas e aranhas foram registrados nas últimas décadas por lá.
Toda essa riqueza faunística se deve ao fato de que o pampa se caracteriza por ser uma região de transição zoogeográfica, com presença de muitas espécies que têm seu limite sul de distribuição geográfica, enquanto outras têm ali seu limite norte “É, portanto, um local de encontro delas”, diz o pesquisador da Rede Campos Sulinos. Segundo Martin, é expressivo o número de aves migratórias que frequentam o bioma, tanto vindas da América do Norte como do norte e do sul da América do Sul. “Cerca de 480 tipos já foram registrados, sendo que um quinto deles é tipicamente campestre”, observa.
Ninho de raras “abelhas azuis” é encontrado em floresta da Flórida
Com a eliminação da vegetação nativa, grande parte dessa biodiversidade está em risco, podendo ocorrer extinção de muitas espécies típicas do bioma. Pode haver ainda perda de serviços ambientais, como regulação da atmosfera e do ciclo hídrico, além de ameaças à preservação de nascentes, controle da erosão, formação de solos, tratamento de efluentes, polinização, controle biológico e produção de alimentos, recreação e matérias-primas. “Sem esquecer dos aspectos culturais, com a descaracterização regional”, lembra Deble. É ilusão, portanto, pensar que só se tem a ganhar explorando de maneira irresponsável um bioma tão rico — e tão nosso quanto qualquer outro.
Mais degradado que Cerrado e Amazônia, Pampa é o bioma menos protegido do país
Disponível em: https://www.nationalgeographicbrasil.com/meio-ambiente/2019/10/degradacao-cerrado-amazonia-pampa-bioma-brasil-rio-grande-do-sul-vegetacao
Apesar de negligenciados, os pampas apresentam a maior biodiversidade de plantas por metro quadrado entre os ecossistemas brasileiros. Menos da metade da vegetação nativa está preservada.
PUBLICADO 4 DE OUT. DE 2019 // ATUALIZADO 5 DE NOV. DE 2020
A biodiversidade brasileira manifesta-se de diversas formas. A mais conhecida é a das amplas florestas tropicais, com altas árvores e rios de quilômetros de largura.
Já outras formas de biodiversidade são mais sutis, suaves, às vezes até difíceis de serem percebidas, apesar de ricas em espécies. É o caso dos campos sulinos, no Pampa, o segundo menor bioma do Brasil. Localizado no estado do Rio Grande do Sul, ele ocupa apenas 2% do território nacional. Os pampas, como também são chamados, estendem-se ainda por outros países da América do Sul, sobretudo Uruguai e Argentina.
Caso se contabilize a biodiversidade total do bioma, o Pampa está atrás dos maiores ecossistemas brasileiros – Mata Atlântica, Amazônia, Cerrado e Caatinga. Porém, levando-se em conta o número de plantas encontradas por metro quadrado, o Pampa é o bioma que apresenta a maior diversidade. Foi o que pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) concluíram ao encontrar 57 espécies diferentes de plantas em 1 m² de campo nativo. Em segundo lugar, vem o Cerrado, com 35 espécies vegetais por metro quadrado.
“Embora a gente possa pensar no campo como algo que talvez não tenha tanta riqueza, até por já conviver com a atividade pastoril há 300 anos, os pesquisadores são uníssonos em destacar que, apesar da atividade antrópica, é uma área que mantém alto nível de biodiversidade quando bem manejada”, analisa Annelise Monteiro Steigleder, Promotora de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre.
Apesar disso, a conservação do bioma não tem sido prioridade para as autoridades. Monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostra que somente 47,3% da vegetação nativa está preservada.
Dados do Inpe apontam também para aumento no número de queimadas nos oito primeiros meses deste ano em comparação com o mesmo período de 2018, saltando de 593 para 981 focos de incêndio, um crescimento de 65%. É o maior índice desde 2009.
Ademais, recentemente, o ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, indicou a produtora rural Maira Santos de Souza como chefe do Parque Lagoa do Peixe, maior reserva federal do bioma. A atitude do ministério foi contestada pela Associação Nacional dos Servidores Ambientais, que se preocupa com a fragilização da política ambiental. Souza foi indicada pelo deputado Alceu Moreira, membro da Frente Parlamentar da Agropecuária, conhecida como ‘bancada ruralista’.
Paisagem única
A vastidão é o que mais impressiona no Pampa preservado. Ao contrário das extensas planícies do Cerrado, os campos sulinos estão sobre colinas com declives, conhecidas pelos locais como coxilhas. Do alto, nada obstrui a vista. Para onde quer que se olhe, avistam-se amplos espaços abertos com gramíneas de diversos tons de verde-amarelado, pequenas casas e gado. Há também a dramaticidade do céu, onde não raro o azul-celeste dá lugar a pesadas nuvens de chuva que vêm do Uruguai.
Cenas assim, contudo, são cada vez mais raras. “Hoje, o Pampa está muito diferente das suas características originais pela conversão agrícola e pela silvicultura”, alerta Valério De Patta Pillar, professor do Instituto de Biociências da UFRGS.
A vegetação original está intercalada por plantações de arroz e soja na parte sul e por florestas de eucaliptos e pinus nas regiões mais ao leste. Além disso, incentivos à mineração e ao uso intensivo de pesticidas também ameaçam os campos nativos.
Uma das facetas mais dramáticas da deterioração do bioma é relatada por Alice dos Santos, 96 anos, que vive nos pampas desde que nasceu. De sua casa, no interior da cidade de Alegrete, região oeste do Rio Grande do Sul, avistam-se massas de areia clara encravadas sobre os campos.
“Anos atrás, era pouquinho, bem baixinho. Era pouca areia, depois aumentou bastante. Por aí tudo tem areia agora”, relata.
Essas regiões são conhecidas popularmente como desertos, o que é impreciso, já que chove regularmente na região. Assim, os pesquisadores referem-se a elas como areais.
“A região tem solos muito arenosos e suscetíveis à erosão, tanto à hídrica quanto à eólica. É um fenômeno natural, porém, o que tem acontecido é que a intensificação do uso e cultivo desses solos acelerou o processo. Então, alguns dos areais expandiram em função do uso agrícola e também do uso intensivo da pecuária”, explica Pillar.
Martha Ribeiro é produtora rural e vive com seu marido no assentamento Unidos pela Terra, criado em 2009. A região é cercada por areais e várias famílias relatam dificuldades para realizar suas atividades agrícolas. “Tem umas partes com muita areia. Muita erosão também. Temos que tomar cuidado especial.”
A degradação das terras é um dos principais problemas em escala mundial, tanto que esta década (2010-2020) é dedicada ao combate à desertificação pela ONU. No Pampa brasileiro, há esforços para conter a arenização, embora ainda insuficientes. Uma das práticas mais comuns é plantar pinus ou eucaliptos, espécies exóticas, sobre as áreas degradadas.
“Alguns produtores conseguiram fazer consorciamento de plantas nativas com eucalipto para diminuir a formação desses areais. Às vezes, conseguem até recuperar algumas áreas”, afirma Jesus, representante do Sindicato dos Produtores Rurais de Alegrete.
A prática divide opiniões. Se, por um lado, consegue controlar em parte o avanço dos areais e gerar renda, por outro reforça a monocultura de espécies exóticas, o que gera impactos em recursos hídricos e isola o ambiente, dificultando o fluxo de outros seres vivos.
Políticas públicas ausentes
O Pampa é o bioma oficial brasileiro com menor percentual de terras dentro de unidades de conservação (2,7%). O Cerrado, em comparação, possui 8,3% de sua cobertura original em territórios de preservação ambiental; e a Amazônia, 27,3%. A meta 15 do programa de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU prevê que o Brasil delimite, até 2020, pelos menos 17% das terras do Pampa como reservas ambientais.
Porém, para especialistas, criar áreas de conservação sem pensar nos corredores ecológicos como um todo não é o bastante. “Precisamos de uma rede de pequenas áreas que se conectem uma com as outras”, afirma Pillar. Para Steigleder, a criação de unidades de conservação precisa “vir concatenada com instrumentos mais amplos de gestão territorial, de modo que se incentive os produtores a também preservarem. Senão a gente vai ter uma ilha campestre rodeada por eucaliptos”, pondera.
Os corredores ecológicos são favorecidos com a obrigatoriedade de manutenção de reservas legais dentro das terras produtivas. Pelo atual Código Florestal (lei 12.651/2012), a regra é que cada imóvel rural no Pampa deve manter 20% de cobertura vegetal nativa. No entanto, há várias exceções, em especial no que concerne a áreas de uso consolidado. Onde a vegetação nativa foi totalmente suprimida antes de julho de 2008, por exemplo, não é necessária a reserva legal.
Os casos deveriam ser averiguados um a um. Entretanto, um decreto de 2015 do então governador do Rio Grande do Sul, José Ivo Sartori, estipulava a premissa de que todos os imóveis do Pampa eram áreas de uso consolidado. Assim, não haveria, em princípio, a necessidade de manter a reserva legal prevista pelo Código Florestal.
O Ministério Público contestou a legalidade do decreto, que acabou suspenso liminarmente pelo Tribunal de Justiça por meio de uma ação civil pública. O processo ainda não foi julgado em definitivo.
Preservar o Pampa não significa proibir a atividade produtiva no bioma. É exatamente o oposto. Para especialistas, o ideal seria conjugar a conservação ambiental com a tradicional atividade pecuária, em decadência na região. “Se houvesse uma política pública de benefícios fiscais para que esses produtores decidissem manter a atividade pastoril, sustentável, isso conservaria a paisagem natural do bioma pampa e consequentemente a sua biodiversidade”, afirma Steigleder.
Ameaças aos Campos do Sul (WWF):
Disponível em: https://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/questoes_ambientais/biomas/bioma_campos/bioma_campos_ameacas/
O domínio das florestas e dos campos meridionais se estende desde o Rio Grande do Sul até parte dos estados de Mato Grosso do Sul e São Paulo. O clima é ameno e o solo naturalmente fértil. A junção destes dois fatores favoreceu a colonização acelerada no último século, principalmente por imigrantes europeus e japoneses que alcançaram elevados índices de produtividade na região.
Devido à riqueza do solo, as áreas cultivadas do Sul se expandiram rapidamente sem um sistema adequado de preparo, resultando em erosão e outros problemas que se agravam progressivamente. Atualmente os campos, que já representaram 2,4% da cobertura vegetal do país, são amplamente utilizados para a produção de arroz, milho, trigo e soja, às vezes em associação com a criação de gado. A desatenção com o solo, entretanto, leva à desertificação, registrada em diferentes áreas do Rio Grande do Sul.
A criação de gado e ovelhas também faz parte da cultura local. Porém, repetindo o mesmo erro dos agricultores, o pastoreio está provocando a degradação do solo. Na época de estiagem, quando as pastagens secam, o mesmo número de animais continua a disputar áreas menores. Com o pasto quase desnudo, cresce a pressão sobre o solo que se abre em veios. Quando as chuvas recomeçam, as águas correm por essas depressões dando início ao processo de erosão. O fogo utilizado para eliminar restos de pastagens secas torna o solo ainda mais frágil.
Para expandir a área plantada, colonos alemães e italianos iniciaram, na primeira metade do século, a exploração indiscriminada de madeira. Árvores gigantescas e centenárias foram derrubadas e queimadas para dar lugar ao cultivo de milho, trigo e videira, principalmente. A mata das araucárias ou pinheiros-do-paraná, de porte alto e copa em forma de prato, estendia-se do sul de Minas Gerais e São Paulo até o Rio Grande do Sul, formando cerca de 100.000 km2 de matas de pinhais. Na sua sombra cresciam espécies como a imbuia, o cedro, a canela, entre outras.
Por mais de 100 anos a mata dos pinhais alimentou a indústria madeireira do sul. O pinho, madeira bastante popular na região, foi muito usado na construção de casas e móveis. Hoje restam apenas 2% da cobertura original da mata das araucárias. O que resta da vegetação original está confinado a áreas de conservação do estado.